sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Sobre uma celebração dita ecuménica

Segundo o jornal Público, de 23 do corrente mês de fevereiro, Marcelo Rebelo de Sousa, já Presidente da República, vai participar numa “celebração ecuménica em sentido lato” (em título, é denominada como inter-religiosa) na Mesquita de Lisboa na tarde de dia 9 de março, dia em cuja manhã ocorrerá a cerimónia da sua tomada de posse e compromisso presidencial na Assembleia da República.
Ainda de acordo com o mesmo jornal, esta iniciativa, que é inédita em Portugal num contexto destes, está a ser organizada para assinalar a sua posse tendo como objetivo genérico alertar para “a necessidade de entendimento entre religiões e culturas”. Porém, os seus objetivos imediatos são: “concentrar atenções e apelar à busca de uma solução para o drama dos refugiados do Médio Oriente que têm fugido para a Europa”; e significar “uma manifestação contra os ataques terroristas que têm surgido na Europa e por todo o mundo”.
Esta celebração “inter-religiosa” (é esta a denominação mais adequada) da Mesquita de Lisboa conta com a participação, além de muçulmanos e de cristãos (católicos, evangélicos e adventistas), de outras confissões religiosas, como judeus e budistas, esperando-se a representação de cerca de duas dezenas de Confissões, dentro do espírito ecuménico e do diálogo inter-religioso que bebe na doutrina do Vaticano II, cara a Marcelo Rebelo de Sousa, que se tem apresentado como assumidamente católico.
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Antes de mais, importa precisar os conceitos.
Assim, ecumenismo é um processo de busca unitário. O vocábulo “ecuménico” provém do adjetivo grego οἰκουμένη referido a γη, que significa (terra) habitada. Com o fenómeno de evolução semântica o termo passou à especificação semântica. Por esta via, em sentido estrito, emprega-se para significar os esforços e o movimento em prol da unidade das Igrejas cristãs; e, num sentido lato, significará a busca da unidade entre as diversas religiões.
O Dicionário Novo Aurélio (1986) traz duas aceções de ecumenismo: pela primeira, significava, “nos primórdios do cristianismo, todos os povos a quem se deveria dirigir a pregação do Evangelho” (definição pelo lado dos destinatários); e, pela segunda, significa o “movimento surgido nas Igrejas protestantes e, posteriormente, na Igreja Católica, originado na crença de terem uma unidade substancial, a doutrina e a mensagem de Cristo”. Por seu turno, o Dicionário da Porto Editora (2011) entende o vocábulo ecumenismo também em duas aceções: pela primeira, significa a “tendência para formar uma única família em todo o mundo” (significação genérica e próxima da etimológica); e, pela segunda, “movimento tendente a unir todas as Igrejas cristãs (significado mais próximo do sentido estrito de ecumenismo).
Do ponto de vista eclesiástico (católico), na definição mais abrangente, ecumenismo consiste na aproximação, na cooperação e na busca fraterna da superação das divisões entre as diferentes Igrejas cristãs. Na ótica do Cristianismo em geral, pode dizer-se que o ecumenismo é o movimento que coloca as diversas denominações cristãs na busca do diálogo e cooperação comuns com vista à superação das divergências históricas e culturais a partir de uma efetiva reconciliação cristã que sobre a unidade fundamental faça assentar e aceitar a diversidade entre as Igrejas. Na senda deste dinamismo, entende-se que a Igreja de Jesus Cristo vai além das diferenças geográficas, culturais e políticas entre as diversas confissões de fé no mesmo Cristo, superando-se o princípio formulado com o aparecimento das Igrejas reformadas cuius regio huius religio, passando-se ao sentido originário da catolicidade: unidade no essencial e máxima liberdade nos demais aspetos.
Já o “diálogo inter-religioso” configura uma expressão que define a relação das Igrejas cristãs com as outras religiões, relação que a Igreja Católica assumiu claramente a partir da elaboração da declaração conciliar Nostra Aetate, há 50 anos.
O diálogo inter-religioso assenta na convicção de que as diferentes religiões devem evitar a disputa pela supremacia mundial e a busca de protagonismo nas preocupações pela sorte do mundo, devendo, ao invés disso, dialogar, respeitar-se mutuamente e evitar guerras em nome da fé religiosa. Mais: para lá de evitarem as situações de conflitualidade, deverão prosseguir no esforço comum de combate aos flagelos que afligem a humanidade.
Com base nestes pressupostos, entre os dias 6 e 9 de setembro de 2003, realizou-se um Encontro Internacional de Teólogos Pluralistas e Estudiosos da Religião que reuniu 35 especialistas em matéria religiosa provenientes da Europa, Ásia e Estados Unidos. Neste encontro, foram estabelecidos os seguintes princípios para o diálogo inter-religioso, que foram divulgados no dia 10 de setembro do mesmo ano em nota de imprensa:
1. O diálogo e o compromisso inter-religiosos devem ser a forma pela qual as religiões se relacionam entre si, sendo que uma necessidade primordial para elas é a de sanar os antagonismos entre si.
2. O diálogo deve envolver os urgentes problemas do mundo atual, incluindo a guerra, a violência, a pobreza, a devastação ambiental, a injustiça de género e a violação dos direitos humanos.
3. Reivindicações de verdade absoluta podem facilmente ser exploradas para incitar ao ódio e à violência religiosos.
4. As religiões do mundo afirmam uma realidade/verdade última que é conceitualizada de formas diferentes.
5. Embora a realidade/verdade última esteja além do alcance da completa compreensão humana, ela encontrou uma expressão em diversas formas nas religiões do mundo.
6. As grandes religiões do mundo, com os seus diversos ensinamentos e práticas, constituem caminhos autênticos para o bem supremo.
7. As religiões do mundo compartilham muitos valores essenciais, como o amor, a compaixão, a igualdade, a honestidade e o ideal de tratar os outros como queremos ser tratados.
8. Todas as pessoas têm liberdade de consciência e o direito de escolher a sua própria fé.
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À luz do exposto parece que deveria saudar a iniciativa do católico Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República num estado aconfessional. Porém, não o faço pelas razões que, a seguir, explano.
Em primeiro lugar, parece que, no quadro da aconfessionalidade do Estado, o contexto da tomada de posse do Presidente não deveria integrar uma celebração religiosa.
Depois, se o Presidente entende que, como Presidente, não deixa de ser um cidadão no gozo de todos os direitos de cidadania e quer assumir em pleno as prerrogativas do artigo 41.º da CRP (CRP que ele jura cumprir e fazer cumprir) – artigo que não se circunscreve à liberdade de consciência, mas também consigna a de culto (e o culto tem uma dimensão privada e uma dimensão pública) – então pedia-se-lhe a coerência com a sua assunção clara de catolicidade, que o levaria a mandar organizar uma celebração católica.
Porém, se quer dispor da liberalidade do Concílio Vaticano II na linha ecuménica e do diálogo inter-religioso, pelos vistos cara ao Presidente, e se quer ser efetivamente o Presidente de todos os portugueses, bem poderia optar por uma celebração religiosa interconfessional num espaço neutro, como um teatro, um auditório, um estádio ou mesmo um espaço, em Lisboa, donde se pode dizer que historicamente Portugal divisa e acolhe o mundo, como a Torre de Belém, os Claustros do Mosteiro dos Jerónimos ou o Centro Cultural de Belém.
Conquanto, os objetivos acima explanados sejam de pertinente e atual interesse, creio não ser a partir da mesquita de Lisboa que se torne mais eficaz o apelo do Chefe de Estado de Portugal à atenção aos refugiados. E não sei se os muçulmanos serão o grupo religioso e político mais credível no mundo ocidental para fazer a ponte entre as diversas culturas e religiões – pelo menos a História recente não o mostra.
Por outro lado, parece descabido dar a entender que o terrorismo tenha origem exclusivamente nos muçulmanos e não em grupos já identificados, embora não totalmente delimitados territorialmente. Bem me lembro de como o Governo Espanhol andou mal quando imputou precipitadamente um grande atentado à ETA.
Não quero acreditar que se trate apenas de uma ideia peregrina de MRS a querer marcar terreno, agenda ou diferença de estilo. Todavia, não me repugnando que Sua Excelência aceite todos os convites que, no decurso do mandato, lhe sejam endereçados por quaisquer entidades religiosas, penso que esta da inclusão de uma celebração ecuménica, ou melhor inter-religiosa, no dia da tomada de posse presidencial não é uma ideia tão plausível como aparenta. E, apesar de tudo, esperava-se do Chefe de Estado melhor ponderação.
Ademais, não se lhe pede que seja o Constantino ou o Teodósio do século XXI a funcionar em sentido inverso.

2016.02.26 – Louro de Carvalho

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