sexta-feira, 20 de maio de 2016

Sobre a Igreja Católica na China

Comummente pensa-se e diz-se que há duas Igrejas de confissão católica na República Popular da China, ou seja, uma Igreja Católica dividida entre o conjunto dos fiéis à comunhão com o Bispo de Roma (Igreja atuante também em Taiwan, República de facto remetida para a Formosa e outras ilhas menores) e o conjunto dos fiéis sujeitos ao controlo governamental – sendo que ambos os conjuntos se encontram enquadrados hierarquicamente.
Segundo a informação corrente, o primeiro grupo constituiria a Igreja verdadeiramente católica, apostólica e romana, rotulada de “Igreja Clandestina”, ao passo que que o segundo grupo seria a “Igreja Oficial” ou “Igreja Patriótica”, controlada pelo poder político e, por conseguinte, desligada da comunhão com Roma raiando uma postura de traição ou de dissidência.
Ora as coisas não são assim, como o explica o sacerdote jesuíta Pe. Joseph Shih, SJ em artigo para a revista “La Civiltà Cattolica”, cuja síntese foi publicada hoje, dia 19 de maio, no Zenit – o mundo visto e Roma.
Nesse artigo, o sacerdote declara que a Igreja católica na China não é aquilo que somos levados a conhecer pelos meios de comunicação estrangeiros: não é, de modo algum, uma Igreja dividida em “Igreja oficial” e “Igreja Clandestina”, mas é uma só Igreja.
Recordo que, a seguir à Revolução Francesa, o novel poder político exigiu que todos os clérigos subscrevessem a Constituição Civil do clero. Muitos sacerdotes, movidos pelo que sentiam ser a orientação superior da Igreja Católica, não acataram a determinação do poder político e arcaram com o ónus da perseguição sofrida e infligida de forma bárbara. Obviamente, os observadores rotularam de fracos, oportunistas ou mesmo traidores os clérigos civilistas (e alguns o terão sido).
Em Portugal, por ocasião da implantação da República, em 1910, num ambiente de generalizada perseguição ao clero e à religião católica, enquanto muitos sacerdotes e bispos, no pressuposto de que republicanismo e catolicismo eram incompatíveis, combateram a República e sofreram a perseguição. Porém, um grupo relativamente pequeno aceitou o regime republicano e foi tido como pertencendo ao grupo dos padres republicanos – os denominados como traidores e incompatibilizados com Roma.
Ora as coisas não podem ser vistas assim num sistema maniqueísta em que estão, de um lado os bons, e, do outro, os maus, oportunistas ou fracos.
Embora tanto no período pós-revolucionário, em França, como no tempo da I República, em Portugal, alguns clérigos civilistas tenham abandonado as funções eclesiásticas, aparentemente vendidos ao novo regime político, tal não significa automaticamente que, a princípio, não estivessem bem intencionados. É uma questão de sobrevivência e a Igreja foi aprendendo que tinha de viver em qualquer regime político, uma vez que os cristãos não são do mundo, mas estão no mundo; e o automartírio não se justifica. Depois, muitas vezes, os regimes e sistemas políticos surgem usualmente em reação a excessos e insuficiências dos antecedentes, acabando ironicamente por vir a cometer excessos similares ou a sofrer de insuficiências semelhantes.
No caso português, hoje é fácil perceber as vantagens existenciais da separação entre as Igrejas e o Estado, pelo que significa de independência das instituições e autonomia das realidades terrestres, ou as vantagens administrativas e organizativas da instituição e consolidação do registo civil (no âmbito do nascimento e filiação, casamento e óbito), no atinente ao conhecimento e poder regulador do Estado sobre os cidadãos todos, principalmente os que usem da liberdade de não pertencer a Igreja alguma ou de não confessar qualquer religião. Tais vantagens não anulam a compreensão para com os resistentes àquele ordenamento político, jurídico e administrativo, já que tal resultou da ideologia positivista, da sanha jacobina e da postura antirreligiosa militante, designadamente anticatólica e anticlerical – o que não é plausível.
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Voltando ao caso da Igreja Católica na República da China, o referido jesuíta esclarece, no seu artigo, que o poder político chinês exige efetivamente que a Igreja Católica seja “independente” de Roma e “dependente” do Estado – assim como faz com todas as grandes denominações religiosas no país – pelo que procedeu à criação de organismos governamentais para a controlar.
Segundo o padre Shih, os chineses, quanto à “independência” instada pelo governo, separam-na em independência política e económica, mas não incluem a religiosa. Por outras palavras, o sacerdote frisa, no seu artigo, que a Igreja católica na China não está dividida, mas é uma só. A parte da Igreja que se submete à Associação patriótica e à conferência episcopal, controladas pelo Estado, permanece, apesar de tudo, espiritual e doutrinalmente fiel à Igreja Católica e ao Papa; a outra parte que não aceita os órgãos oficiais de controlo estatal, tida como “Igreja Clandestina” é conhecida (embora não reconhecida) pelo governo, que a deixa trabalhar, contanto que não faça muito ruído, mas não a considera uma instituição oficial de religião.
É óbvio que ambas as posturas organizativas de Igreja na China passaram de facto por reais dificuldades decorrentes de dois fatores: o antiteísmo (mais limitante e agressivo que o ateísmo militante) que enforma a ideologia de que emana o regime, que evolui para a economia de mercado, mas mantém o nervo duro do pensamento político de sistema centralizado e celular; e a incompatibilidade entre o cristianismo ativo, próprio da Igreja militante e o cerceamento das liberdades e do exercício dos direitos humanos, típico do regime de pensamento e partido único.   
Ora, o padre Shih assegura:
“Apesar do severo controlo que as autoridades exercem sobre a Igreja, os dois – Igreja e Governo – permanecem duas entidades bem distintas na China e não se confundem. Por isso, não me parece certo o facto de que, quando acontece algo negativo na Igreja, se acuse rapidamente o Governo chinês.”.
É certo que os sacerdotes da “Igreja Patriótica” são frequentemente convocados para as ações de formação que não são propriamente “lavagens de cérebro”, mas “interpretações socialistas da doutrina cristã”. E, não sendo uma situação normal, muito menos plausível, acontece que, de acordo com o esclarecimento do jesuíta, os sacerdotes vão a esses encontros sabendo – por formação própria – que não compartilham de tais ensinamentos; fazem-no pro bono pacis, ou seja, para manterem espaço de atuação o mais livre e eficaz possível.
O colunista de “La Civiltà Cattolica” dá como exemplo do acima exposto o caso dos sacerdotes de Shangai, que acataram a convocação do Governo indo sem receio aos cursos de formação, porque têm da ‘formação’ um conceito e uma finalidade diferentes do conceito e finalidade do Governo. Para o Governo, a formação é um meio de instrução dos sacerdotes sobre a praxe da sua política religiosa, pretendendo a desejada conformação da Igreja cristã na China à sociedade socialista. Em conformidade com essa ideia, a Igreja deve mudar, a ponto de modificar a própria interpretação dos dogmas. Não obstante, para os sacerdotes, a formação “é obrigação a que não podem faltar, mas uma obrigação de que eles não compartilham o objetivo e nem os conteúdos”.
Porém, o sacerdote não deixa de assumir uma posição tão crítica como compreensiva:
“É verdade que a situação da Igreja católica na China não é ideal e que nem todas as decisões da Santa Sé receberam o consenso dos fiéis na China. Mas quem fala da Igreja na China deve considerar as circunstâncias reais nas quais ela vive, e erraria se a criticasse falando só dos defeitos. Deve-se deplorar principalmente quem dá a entender que a Igreja na China não seja leal, induzindo os fiéis a perderem a confiança na própria Igreja.”.
Como se pode ver, o jesuíta faz um juízo crítico sobre a situação relacional entre o Estado e a Igreja, mas não um juízo moral culpabilizante sobre a Igreja na China, os seus fiéis e os seus sacerdotes. Para as pessoas de Igreja olha com as categorias da compreensão, do respeito e da aceitação, censurando os que facilmente rotulam os outros.
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Os meios de comunicação internacional têm dificuldade em testemunhar como os chineses católicos viveram o último dia do Pentecostes. É o mesmo Zenit – o mundo visto e Roma que nos dá conta de preciosas curiosidades sobre a celebração desta solenidade do Espírito Santo.
Segundo informação da agência Fides, 62 fiéis entregaram, na solenidade litúrgica de Pentecostes, uma cópia transcrita à mão do evangelho de São Mateus ao Bispo Dom Paolo Meng Ning You, ordinário da arquidiocese de Tai Yuan na província de Shan Xi, na China. Trata-se dum gesto que revela o propósito espiritual de meditar, assim, na Palavra de Deus.
Também, na paróquia de Xi Chang, na província de Jiang Xi, se fez uma longa procissão pelas ruas em que os fiéis empunhavam cartazes gigantes em que estavam escritos os sete dons do Espírito Santo – sapiência, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus – e que foi coroada com a solene celebração da Eucaristia com o envio missionário, como acontecera com os Apóstolos no Evangelho e nos primórdios do cristianismo.
Por seu turno, os fiéis da paróquia de São João de Yi Zhuang, da Arquidiocese de Pequim, partilharam um momento de ágape (um banquete coletivo) depois da missa; e onze fiéis, guiados pelo pároco, rumaram à catedral onde receberam o sacramento da Confirmação ou Crisma.
Também a comunidade local da paróquia de Wu La Te Hou Qi, na Mongólia, se reuniu para celebrar a Vigília da Solenidade de Pentecostes. Durante a homilia, o sacerdote encorajou todos os presentes a terem como sinal da misericórdia e da comunhão com o Espírito Santo a ida frequente à igreja, rezar mais e visitar os idosos e doentes.
E, em muitas paróquias das províncias de Shan Dong, Hebei, Shaan Xi, durante a Eucaristia foi administrado o Sacramento da Confirmação aos seus jovens e a muitos adultos.
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Falamos da China, de maioria não católica e de regime de partido único, onde a Igreja ou as Igrejas sofrem de constantes restrições. É caso para nos interrogarmos sobre a vivência cristã neste país da lusofonia, de maioria que se diz católica num regime de liberdades e de direitos.
Também se colocará aqui o dilema de interpretar a doutrina cristã segundo as categorias socialistas ou segundo as categorias do Evangelho? Ou a questão aqui não será, antes, não tirar todas as consequências pessoais, profissionais, sociais e políticas dos preceitos evangélicos, sobretudo no atinente à misericórdia e aos pobres?

2016.05.19 – Louro de Carvalho   

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