domingo, 26 de junho de 2016

Francisco persiste em evocar o “genocídio” infligido ao povo arménio

Não era expectável que o Papa na “visita ao primeiro país cristão” (a Arménia foi o 1.º país a adotar o cristianismo como religião oficial em 301, ainda no tempo das perseguições do Império Romano), esquecesse a tragédia que se bateu sobre o povo arménio provocada pelas hostes da Turquia, uma vez que, na videomensagem das vésperas da partida, declarava ir para rezar e, como peregrino, “haurir da antiga sabedoria do vosso povo e beber das nascentes da vossa fé, rochosa como as vossas famosas cruzes esculpidas na pedra”. E não deixa de referir:
“A vossa história e as vicissitudes do vosso amado povo suscitam em mim admiração e dor: admiração, porque encontrastes na cruz de Jesus e no vosso engenho a força para vos erguerdes sempre, até de sofrimentos entre os mais terríveis que a humanidade recorda; dor, pelas tragédias que os vossos pais viveram na sua carne”.
Depois, recorda que, em 2015, os arménios vieram a Roma orar junto do túmulo de Pedro. Ali, ao evocar o centenário do martírio, Francisco falara claramente em “genocídio”. As autoridades turcas não gostaram da evocação histórica feita naqueles termos, mas tratava-se da chacina de um milhão e meio de pessoas.
A única justificação teórica para não designar de genocídio a exterminação de grande parte da população arménia em 1915 seria o facto de o termo só ter sido inventado em 1944 – o que não retira uma vírgula à hediondez do ato. De facto, “genocídio” é a exterminação sistemática de pessoas, em determinada região ou país  com base na diferença de nacionalidade, raça, religião e etnia. O termo (criado por Raphael Lemkin, judeu polaco, jurista e conselheiro no Departamento de Guerra dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial) deriva do grego “genos”, que significa “raça”, “tribo” ou “nação”; e da raiz latina “-cida” (dos verbos: “caedere”, que significa cortar e “occidere”, que significa matar), com o sentido unívoco de “matar”. A tentativa de extermínio total dos judeus pelos nazistas (Holocausto) foi o forte motivo que levou Lemkin a lutar por leis que punissem o genocídio. O termo é usado a partir de 1944. Motivado por sentimentos de xenofobia e racismo, o genocídio consiste na eliminação, total ou em parte, dum grupo ou comunidade com a mesma caraterística étnica, racial, religiosa ou social. Também é considerado “genocídio”: o ataque grave à integridade física ou psíquica de elementos desse grupo; a coação dessas pessoas à vivência em condições desumanas que podem causar a morte; e a transição forçada de crianças desse grupo para outro grupo.
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Francisco evoca o genocídio logo no “Encontro com as autoridades civis e com o corpo diplomático, no Palácio Presidencial em Ierevam”, a capital, no dia 24 de junho.
Depois de se referir àquele “povo de antigas e ricas tradições, que testemunhou corajosamente a sua fé, que sofreu muito”, mas que “sempre voltou a renascer” e de citar o poeta arménio Elise Ciarenz sobre “a profundidade da história e sobre a beleza da natureza da Arménia”, sublinhou a densidade da sua “experiência gloriosa e dramática”. E não podia ter sido mais explícito quando declarou retribuir a visita que o Presidente fez ao Vaticano, no ano passado, para participar numa solene celebração na Basílica de São Pedro, juntamente com Karekin II, Patriarca Supremo e Catholicos de Todos os Arménios, Aram I, Catholicos da Grande Casa de Cilícia, e Nerses Bedros XIX, Patriarca de Cilícia dos Arménios, recentemente falecido: “Naquela ocasião, comemorou-se o centenário do Metz Yeghérn, o ‘Grande Mal’, que atingiu o vosso povo e causou a morte duma multidão enorme de pessoas”. E, no seu entender, não se tratou de ato isolado neste mundo de egoísmos e de ambições inconfessáveis, em que tantas vezes as grandes potências viram a cara para o outro lado:
“Aquela tragédia, aquele genocídio, marcou o início, infelizmente, do triste elenco das imensas catástrofes do século passado, tornadas possíveis por aberrantes motivações raciais, ideológicas ou religiosas, que ofuscaram a mente dos verdugos até ao ponto de se prefixarem o intuito de aniquilar povos inteiros. Como é triste que, neste caso como nos outros dois, as grandes potências virassem a cara para o outro lado!”
Mas o Papa não se fixa no mero lamento, mas presta homenagem a este povo, que, “mesmo nos momentos mais trágicos da sua história, sempre encontrou na Cruz e na Ressurreição de Cristo a força para se levantar de novo e retomar o caminho com dignidade” – o que “revela como são profundas as raízes da fé cristã e que tesouro infinito de consolação e esperança a mesma encerra”. E, esperando que “a humanidade saiba tirar daquelas experiências trágicas a lição de agir com responsabilidade e sabedoria para evitar os perigos de recair em tais horrores” apela à multiplicação dos “esforços, por parte de todos, por que, nas disputas internacionais, prevaleçam sempre o diálogo, a busca constante e genuína da paz, a colaboração entre os Estados e o assíduo empenho das organizações internacionais, a fim de se construir um clima de confiança propício a alcançar acordos duradouros, que tenham em vista o futuro”.
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Outro momento da evocação explícita do “Grande Mal” (genocídio) foi a visita ao Memorial das vítimas do massacre da população arménia pelo Império turco-otomano em 1915. Ali, o Papa e o Catholicos foram acolhidos pelo Presidente e juntos percorreram a pé a última parte do trajeto que leva ao monumento, a cujos pés Francisco depositou uma coroa de flores, ante um grupo de crianças que mostrava imagens dos mártires de 1915. Diante da chama perpétua todos rezaram o Pai Nosso, após o que foram proclamadas duas leituras: a primeira tirada do Livro dos Hebreus (‘Tivestes que suportar uma dura luta’) e a segunda do cap. 4 do Evangelho de João (‘Tudo o que pedirdes em meu nome, eu o farei’). No fim, o Papa pronunciou a Oração de intercessão:
Cristo, que coroas os teus Santos, cumpres a vontade de teus fiéis e olhas com amor e doçura às tuas criaturas, escuta-nos dos céus da tua santidade, por intercessão da Santa Mãe de Deus, pelas súplicas de todos os teus santos e daqueles de quem hoje é a memória.
Ouve-nos, ó Senhor e tem piedade, perdoa-nos, expia e apaga os nossos pecados.
Faz-nos dignos de glorificar-te com sentimentos de graças, com o Pai e a Espírito Santo, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
A seguir, o Papa, o Catholicos e o Presidente arménio passaram para a esplanada do Museu do Memorial. No jardim, ao longo do percurso, Francisco regou uma árvore; e, na esplanada, decorreu o comovente encontro com descendentes de perseguidos arménios, que na época foram salvos e acolhidos na residência de verão dos Papas em Castel Gandolfo. E, à despedida, o Papa assinou o Livro de Honra, onde escreveu a mensagem de oração e memória:
“Aqui rezo, com dor no coração, para que nunca mais existam tragédias como essa, para que a humanidade não se esqueça e saiba vencer o mal com o bem. Deus conceda ao amado povo arménio e ao mundo inteiro a paz e a consolação. Que Deus guarde a memória do povo arménio. A memória não deve ser diluída nem esquecida, a memória é fonte de paz e de futuro”.
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No encontro ecuménico de oração pela paz na praça da República da capital, Ereván, a 25 de junho, o Pontífice pediu a retoma do caminho de reconciliação entre os povos arménio e turco e que a paz brote no Nagorno Karabaj, região de conflito com Azerbaidjão. E, a partir das palavras de Jesus “Dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo que Eu vo-la dou” (Jo 14,27), lembrou “como são grandes hoje os obstáculos no caminho da paz e trágicas as consequências das guerras”; evocou as “populações forçadas a abandonar tudo, especialmente no Médio Oriente onde muitos dos nossos irmãos e irmãs sofrem violências e perseguição por causa do ódio e de conflitos sempre fomentados pelo flagelo da proliferação e do comércio de armas, pela tentação de recorrer à força e pela falta de respeito pela pessoa humana, especialmente os vulneráveis, os pobres e os que pedem apenas uma vida digna”. E logo a seguir, reportando-se à Saudação no início da Missa para os fiéis de rito arménio, a 12 de abril de 2015:
“Não consigo deixar de pensar nas provações terríveis que o vosso povo experimentou: completou-se há pouco um século do ‘Grande Mal’ que se abateu sobre vós. Este ‘enorme e louco extermínio’, este trágico mistério de iniquidade que o vosso povo provou na própria carne, permanece impresso na memória e queima no coração”.
E porfiou, na esteira de João Paulo II, na Carta Apostólica por ocasião do 1700.º aniversário do batismo do povo arménio, reiterar que “os vossos sofrimentos são nossos: são os sofrimentos dos membros do Corpo místico de Cristo”; e “recordá-los é não só oportuno, mas também forçoso: são uma advertência em todo o tempo, para que o mundo não volte jamais a cair na espiral de tais horrores.
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E também evocou o tema na homilia da ‘Missa votiva da Misericórdia de Deus’, celebrada na presença do Catholicos Karekin II, segundo o rito latino, em italiano e arménio, em Gyumri, cidade que no domínio soviético teve o nome de Lininakan, recordando Lenin, e que em 1988 sofreu um devastador terramoto.
A este respeito e frisando a memória como um dos “alicerces estáveis sobre os quais podemos, incansavelmente, edificar e reedificar a vida cristã”, refere, além da memória da história pessoal de amor com Deus:
“Há também outra memória a salvaguardar: a memória do povo. De facto, os povos têm uma memória, como as pessoas. E a memória do vosso povo é muito antiga e preciosa. Nas vossas vozes, ressoam as dos Santos sábios do passado; nas vossas palavras, há o eco de quem criou o vosso alfabeto, com a finalidade de anunciar a Palavra de Deus; nos vossos cânticos, misturam-se os gemidos e as alegrias da vossa história”.
Porém, sabendo que Ele não nos deixa sozinhos,
“Mesmo entre adversidades tremendas, poderemos dizer (…) que o Senhor visitou o vosso povo (cf Lc 1,68): recordou-Se da vossa fidelidade ao Evangelho, das primícias da vossa fé, de todos aqueles que testemunharam, mesmo à custa do sangue, que o amor de Deus vale mais que a vida (cf Sl 63,4). É bom para vós poderdes lembrar com gratidão que a fé cristã se tornou a respiração do vosso povo e o coração da sua memória.”.
Porém, para que não se reduza tudo ao passado e se construa o futuro, o Pontífice aponta a como um outro alicerce da vida cristã a fazer luz no caminho da vida. Abrindo espaço a Jesus, tornamo-nos capazes de irradiar amor. Assim, os arménios darão continuidade à sua “grande história de evangelização, de que a Igreja e o mundo precisam nestes tempos conturbados, mas que são também os tempos da misericórdia”. E o Papa não se inibe de apresentar como terceiro alicerce da vida cristã o amor misericordioso: “é sobre esta rocha, a rocha do amor recebido de Deus e oferecido ao próximo, que se baseia a vida do discípulo de Jesus”, “rejuvenesce e se torna atraente o rosto da Igreja”. “Chamados, antes de mais nada, a construir e reconstruir incansavelmente vias de comunhão, a edificar pontes de união e superar as barreiras de separação”, os crentes devem ser exemplo, “colaborando entre si no respeito recíproco e no diálogo, sabendo que a única competição possível entre os discípulos do Senhor é a de verificar quem é capaz de oferecer o amor maior”.
E como resposta à questão “Como é possível tornar-se misericordioso, com todos os defeitos e misérias que cada um vê dentro de si e ao seu redor?”, inspirou-se no exemplo de São Gregório de Narek, palavra e voz da Arménia e grande arauto da misericórdia divina, que Francisco propusera à atenção geral ao incluí-lo entre os Doutores da Igreja (2015.04.12). Com efeito:
“É difícil encontrar alguém como ele, capaz de medir as misérias abissais que se podem esconder no coração do ser humano. Mas ele sempre colocou em diálogo as misérias humanas e a misericórdia de Deus, elevando uma ardente súplica feita de lágrimas e confiança no Senhor, dador dos dons, a bondade por natureza (…), voz de consolação, anúncio de conforto, impulso de alegria, (…) ternura incomparável, misericórdia transbordante, (…) beijo de salvação (Livro das lamentações, 3,1), na certeza de que jamais é ofuscada pelas trevas da ira a luz da misericórdia» (ib, 16, 1).”.
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E, com o exemplo de Gregório de Narek – mestre de vida, que ensina como “é importante, em primeiro lugar, reconhecermo-nos necessitados de misericórdia e depois, perante as misérias e as feridas que individuarmos, não nos fecharmos em nós mesmos mas abrir-nos, com sinceridade e confiança, ao Senhor” – o Papa Francisco aposta no reavivar da memória coletiva (chamando as coisas pelos seus nomes) de bens e males, no fortalecimento da fé para construção do futuro, na promoção da reconciliação ente pessoas e povos e na atenção misericordiosa aos mais necessitados abrindo-lhes caminhos de dignificação e autonomia.

 2016.06.26 – Louro de Carvalho

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